Texto publicado no blog de Maria José Rijo em 29 de Julho de 2008
(A propósito de um livro com 500 anos)
Por entre as altas estantes repletas de livros que vestem as paredes de salas e corredores do velho convento dos Jesuítas adaptado a Biblioteca desde o dia 10 de Junho de 1880 – no reinado do Senhor Dom Luís que Deus tenha em sua Santa Guarda – passava eu naqueles anos 86/89 vezes incontáveis.
Fazê-lo era uma preocupação do meu quotidiano que nunca se tornou rotineira.
Fosse das brancas abóbadas, do vermelho da tijoleira encerada, da passadeira de corda que abafava os passos, fosse dos reflexos de luz nas estantes castanhas. Fosse da presença dos cerca de 80.000 livros. Fosse dos nomes gravados de autores, beneméritos, fundadores… fosse do que fosse o ambiente por lá tem qualquer coisa de poético e sagrado que prende.
Nos dias bonitos, pelas janelas talhadas nas paredes espessas por onde se espreita o jardim, entravam nesgas de sol que no movimento cadenciado do tempo iam como ponteiros luminosos indicando lombadas, avivando oiro de letras, acordando da sombra títulos mais gastos como que sugerindo: - olha aqui.
Os livros novos, com seu cheiro de colas e tintas frescas despertam o apetite, a gula, como caramelos. São apetecíveis, alegres, vistosos. São quase “barulhentos” na vivacidade das cores das capas.
Os livros antigos são mais silenciosos e comoventes. São discretos, quietos e sábios como eremitas.
Passar por entre eles, assim – tu cá, tu lá – já era um privilégio.
Então sentia-me como um centurião cheio de fé a quem – segundo S. Mateus no Evangelho, Jesus disse: “Vai e assim como acreditaste assim será”.
Nunca duvidei que o milagre vivia ali ao meu alcance.
Os livros ressuscitam a qualquer momento.
Era só parar.
Parar, estender um pouco o braço, espetar o dedo indicador, pressionar o topo de uma qualquer lombada e pronto.
O livro cede. Obedece. Inclina-se.
Fica rendido – disponível.
Então a mão completa o gesto, dá-lhe apoio e recolhe-o. Abri-lo, folheá-lo, lê-lo… é a tentação.
Pronto. Aí está oferecido – de bandeja – uma vida, uma alma, um passado, uma aventura, uma experiência, uma história, um amigo, uma companhia. Tudo um livro pode ser e conter – mas, sempre, sempre o milagre à nossa mão.
Lê-se, relê-se. Pega-se, larga-se.
Ama-se, detesta-se, dá-se, vende-se, compra-se, rasga-se – queima-se – conserva-se! E tudo o livro consente.
Será que sente? – (Às vezes penso que sim)
O livro. Aquele livro noticiado fazia 500 anos.
Foi impresso em “Veneza no ano da Salvação de 1488, 8º Dia das Calendas de Novembro” – o que equivale actualmente ao dia 25 de Outubro.
Escrito em latim, tem o título de “Liber Medicinalis” e foi seu autor Quinti Sereni.
Veio-me ter à mão, por acaso.
Era agradável ao tacto, quase morno, como um corpo vivo.
Fiquei a passá-lo de folha em folha. Dos livros até o cheiro é bom – (era o meu estribilho) quando falava à garotada que procurava contagiar do meu desvelo por eles.
É um livro belo, profusamente ilustrado, cheio de referências à astrologia – um livro cheio de mistério, muito bem conservado ainda.
As páginas amarelecidas tinham manchinhas, como sardas, cor de chá num rosto nobre de pele curtida empregaminhada pelo tempo.
Como se vestisse um casaquinho justo de cabedal castanho, ali estava, nas minhas mãos enternecidas, encadernado em couro macio como seda.
Não é todos os dias que se tem o condão de conviver e poder tocar em preciosidade como esta.
A biblioteca que o acolhe tinha sido recuperada com esmero. Cativar pequenos para o entre e sai que os familiarizasse com o espaço, era o propósito principal de tudo que então por lá se fazia.
A descoberta daquele “Avô livro” que fazia 500 anos foi um achado.
Logo se acomodou (a recato de tentações) mas em evidência e foi honrado com sua vela de aniversário, seu laço de fita de cetim branco e sua taça de rebuçados para retribuir “docemente” a atenção de quem quer que o cumprimentasse.
Foi a festa.
Ficou entronizado ao meio da sala de leitura e até se conduziram pela mão os mais miúdos.
- Anda, vem vê-lo! – Dizia eu – mesmo que não o entendas não faz mal. Ele é de outros tempos, usa outra linguagem – mas vem. Vem, que ele gosta e tu também vais gostar. Verás que te oferece rebuçados dos que ele usa para a tosse…
E a garotada, emocionada, ria. Queriam ver, faziam perguntas. Deslumbravam-se descobrindo que aquele livro já existia no tempo das descobertas. E com seus olhos limpos de crianças, arredondados de pasmo repetiam: do tempo dos descobrimentos?
Os rebuçados iam desaparecendo. Iam-se renovando e velhos e novos, iam sorrindo e reflectindo conforme as idades, a formação, os gostos, as preocupações sobre aquela festa singular.
No centro do acontecimento – o Livro – Um livro!
Era o seu mês de aniversário.
Era a sua honra de ser o anfitrião de honra naquela Biblioteca fabulosa, recheada de maravilhas e ainda com tantos segredos por desvendar.
Ensinam-se as crianças a lavar-se, vestir-se, pentear-se, estar à mesa desde a mais tenra idade.
Dá-se-lhes responsabilidades pelo brinquedo caro, o fato, a prenda de ouro.
Saiba cada qual desde que começa a identificar o seu prato, a sua cama, a sua casa, a sua rua – que é igualmente seu e está à sua guarda o património que testemunha o passado do seu País – e tudo mudará.
Se eu tivesse dúvidas – que não tenho – bastaria recordar a unção, a religiosa alegria que transbordava do rosto de qualquer menino ou menina a quem eu desse a mão e conduzisse junto da estante do cancioneiro da Públia Hortênsia para lhe pôr “aos pés” um botão de rosa, ou um pé de rosmaninho junto aos Anais de Elvas ou qualquer outra simples homenagem a qualquer livro raro.
Se eu tivesse dúvidas…
Pensaria na dignidade, na compostura com que me acompanhavam e ficaria com a certeza, que guardo comigo, que o faziam como quem pede a benção a um velho antepassado – com comoção e respeito e a consciência de que aquele culto os transcendia.