11
Jan09
"Liberdade" de Fernando Pessoa - audição e uma análise do poema
eva
Com a devida vénia, transcrevo aqui uma análise ao poema Liberdade de Fernando Pessoa, análise postada em http://omj.no.sapo.pt/Forum/poema_liberdade.htm , no sítio O Major Reformado
"Datado de 16/3/1935, o poema "Liberdade" é um dos poemas mais conhecidos e citados de Fernando Pessoa. É um poema ortónimo, ou seja, escrito por Fernando Pessoa em seu próprio nome e aborda um tema raras vezes abordado pelo poeta de modo tão explicito: a liberdade humana.
À primeira vista trata-se de uma abordagem leve e divertida ao tema. Essa é claramente a sensação que se tem ao ler o poema. "Ai que prazer / Não cumprir um dever" - uma leveza simples e recta, que fala de como é bom não ter deveres, ou tê-los e não os cumprir, numa rebeldia com que sonham todas as crianças.
Mas em Pessoa nada é simples, muito menos recto...
Há uma chave para desvendar este poema "Liberdade". Um poema eu considero ser de uma intensa ironia. Mas essa chave curiosamente não está no poema, mas apenas referenciada nele de modo indirecto. É uma pista que Pessoa lança ao leitor, mas apenas ao leitor mais interessado - um leitor de segundo nível, que ignora o tom superficial leve das palavras e se interessa pelo conteúdo escondido das intenções.
Que pista é esta? Está numa citação que Pessoa nunca colocou, mas que devia vir logo a seguir ao título. No manuscrito original Pessoa escreve debaixo do titulo do poema: "(Falta uma citação de Séneca)".
Que citação é esta? E quem era Séneca?
Séneca foi um filósofo do Séc. I, um estóico preocupado com a ética. Não nos alongaremos com a análise da vida deste filósofica, mas citaremos dois principios dele que nos interessam para a compreensão do poema "Liberdade". Dizia Séneca que o cumprimento do dever era um serviço à humanidade. Para ele o destino estava predestinado, o homem pode apenas aceitá-lo ou rejeitá-lo, mas apenas a aceitação lhe pode trazer a liberdade. Eis o estoicismo na sua essência.
Eis o filtro que se deverá usar na leitura do poema "Liberdade": o estoicismo de Séneca.
Tudo o que antes parecia ligeiro, agora é intensamente irónico. Fernando Pessoa pensa o contrário do que diz o seu poema. Se ele diz que bom é não cumprir um dever, ele pensa o contrário, que o dever é essencial para a liberdade, se o homem quiser ser livre, terá de se submeter ao cumprimento do dever que lhe é imposto.
Outra achega: a semelhança entre a ironia utilizada e a escrita que se assemelha à de Caeiro. É Caeiro o heterónimo que renega igualmente o dever e o heterónimo que domina Pessoa no inicio das suas decisões, que o prende à realidade e lhe permite ascender aos astros. Será Pessoa aqui também um critico de si próprio e um critíco de Caeiro? Não poderemos dizer ao certo, mas parece-nos que sim, que as palavras de Pessoa são irónicas e dirigidas a Caeiro, ao seu próprio sonho de juventude, em que pensou ser possível ser livre das ideias.
Afinal este poema é um ensaio de revolta contra o que Caeiro disse, contra os próprios projectos falhados de Pessoa. Ele que queria atingir a liberdade libertando-se de tudo, da civilização, dos deveres, dos livros, ser apenas criança... O titulo - Liberdade - é apenas uma ironia triste e amarga e um contra-senso propositado. Arde em Fernando Pessoa a derrota da sua aventura, perto que está da morte quando escreve este poema. Este poema é de certo modo o epitáfio intelectual de Caeiro - o Mestre, por parte de Fernando Pessoa - o Criador.
Ps: há quem adivinhe neste poema de Pessoa também uma crítica social implicita, sobretudo nos versos: "Flores, música, o luar, e o sol que peca / Só quando, em vez de criar, seca." e na referência às finanças, que encobriria um ataque a Salazar, que foi, como se sabe, Ministro das Finanças entre 1928 e 1932".
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E agora acrescento eu!
Para quem possa estranhar, na análise acima transcrita, a referência a Salazar que pode parecer algo forçada (pois não é uma faceta muito conhecida de Pessoa) não é, no entanto, de estranhar.
Pessoa criticou abertamente Salazar tendo-lhe dedicado alguns poemas, nomeadamente e a título de exemplo:
Antonio de Oliveira Salazar.
Trez nomes em sequencia regular...
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma arvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
Trez nomes em sequencia regular...
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma arvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
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Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A agua dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A agua dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
***************************
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
in "Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I, Tomo V. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000"
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João Villaret diz o poema "Liberdade"
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