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Caminhos de Eva

Caminhos de Eva

Eva percorrendo umas vezes estradas, outras veredas. Caminhando sempre com amor e a esperança de encontrar a porta certa. Parando de vez em quando para retemperar forças... admirar uma flor… uma paisagem… fazer novas amizades... e meditar... e reencontrar velhos amigos... e demais companheiros de jornada!
17
Jan09

Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casaes Monteiro sobre a génese dos heterónimos

eva

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Caixa Postal 147,
Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.

Meu presado Camarada:

        Muito agradeço a sua carta, a que vou responder immediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de copia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o addiamento.
        Em primeiro logar, quero dizer-lhe que nunca eu veria "outras razões" em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua propria infallibilidade, nem toma qualquer critica, que se lhe faça, como uma acto de lesa-divindade. Além disso, quaesquer que sejam os meus defeitos mentaes, é nulla em mim a tendencia para a mania da perseguição. Àparte isso, conheço já sufficientemente a sua independencia mental, que, se me é permittido dizel-o, muito approvo e louvo. Nunca me propuz ser Mestre ou Chefe - Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrellar ovos. Não se preoccupe, pois, em qualquer occasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.
        Concordo absolutamente comsigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com um livro da natureza de "Mensagem". Sou, de facto, um nacionalista mystico, um sebastianista racional. Mas sou, àparte isso, e até em contradicção com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a "Mensagem" não as inclue.
        Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e prompto. Como estava prompto, incitaram-me a que o publicasse: accedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no premio possivel do Secretariado, embora nisso não houvesse peccado intellectual de maior. O meu livro estava prompto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao premio, pois ignorava que o praso para entrega dos livros, que primitivamente fôra até ao fim de Julho, fôra alargado até fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares promptos da "Mensagem", fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
        Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do genero de "Mensagem", figurava em numero um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande - um livro de umas 350 paginas -, englobando as varias sub-personalidades de Fernando Pessoa elle-mesmo, ou se deveria abrir com uma novella policiaria, que ainda não consegui completar.
        Concordo comsigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de "Mensagem". Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta - em certo modo secundaria - da minha personalidade não tinha nunca sido sufficientemente manifestada nas minhas collaborações em revistas (excepto no caso do "Mar Portuguez", parte deste mesmo livro) - precisamente por isso convinha que ella apparecesse, e que apparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação practica), com um dos momentos criticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fôra exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Architecto.
        (Interrompo. Não estou doido nem bebado. Estou, porém, escrevendo directamente, tam depressa quanto a machina m'o permitte, e vou me servindo das expressões que me ocorrem, em olhar, a que literatura haja nellas. Supponha - e fará bem em suppor, porque é verdade - que estou simplesmente fallando comsigo.)
        Respondo agora directamente às suas trez perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) genese dos meus heteronymos, e (3) occultismo. Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da "Mensagem" que é uma manifestação unilateral, tenciono proseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do "Banqueiro Anarchista"; essa deve estar prompta em breve e conto, desde que esteja prompta, publical-a immediatamente. Se assim fizer, traduzo immediatamente esse escripto para inglez, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidade europeias. (Não tome esta phrase no sentido de Premio Nobel immanente). Depois - e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia - tenciono, durante o verão, reunir o tal volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa elle-mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do anno em que estamos. Será esse o volume que o Casaes Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que "Mensagem" já manifestou. Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Alvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me fôr dado o Premio Nobel. E comtudo - penso-o com tristeza - puz no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramatica, puz em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da musica que lhe é própria, puz em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casaes Monteiro, que todos estes teem que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
        Creio que respondi à sua primeira pergunta. Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por emquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!
        Passo agora a responder à sua pergunta sobre a genese dos meus heteronymos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
        Começo pela parte psychiatrica. A origem dos meus heteronynimos é o fundo traço de hysteria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente hysterico, se sou, mais propriamente, um hystero-neurasthenico. Tendo para esta segunda hypothese, porque ha em mim phenomenos de abulia que a hysteria, propriamente dita, não enquadra no registro dos seus symptomas. Seja como fôr, a origem mental dos meus heteronymos está na minha tendencia organica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes phenomenos - felizmente para mim e para os outros - mentalizaram-se em mim: quero dizer, não se manifestam na minha vida practica, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós commigo. Se eu fosse mulher - na mulher os phenomenos hystericos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema de Alvaro de Campos (o mais hystericamente hysterico de mim) seria um alarme para a visinhança. Mas sou homem - e nos homens a hysteria assume principalmente aspectos mentaes; assim tudo acaba em silêncio e poesia... Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronymismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heteronymos. Começo por aquelles que morreram, e de alguns dos quaes já me não lembro - os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quasi esquecida. Desde criança tive a tendencia para crear em meu torno um mundo ficticio, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmaticos.) Desde que me conheço como sendo aquillo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, caracter e historia, varias figuras irraes que eram para mim tam visiveis e minhas como as coisas d'aquillo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendencia, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem me acompanhado sempre, mudando um pouco o typo de musica com que me encanta, mas não alterando a sua maneira de encantar.
        Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heteronymo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente - um certo Chevalier de Pas dos meus seis annos, por quem escrevia cartas delle a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquella parte da minha affeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro tambem, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem duvida - ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que me é mister um exforço para me fazer saber que não foram realidades.
        Esta tendencia para crear em torno de mim um outro mundo, egual a este mas com outra gente, numa me sahiu da imaginação. Teve varias phases, entre as quaes esta, succedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espirito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem supponho que sou. Dizia-o, immediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja historia accrescentava, e cuja figura - cara, estatura, traje e gestos - immediatamente [sic] eu via deante de mim. E assim arranjei, e propaguei, varios amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta annos de distancia, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudade delles.
        (Em eu começando a fallar - e escrever à machina é para mim fallar -, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casaes Monteiro! Vou entrar na genese dos meus heteronymos literarios, que é, afinal, o que v. quer saber. Em todo o caso, o que vae dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)
        Ahi por 1912, salvo erro (que nunca póde ser grande), veio me à idéa escrever uns poemas de indole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estylo Alvaro de Campos, mas num estylo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, comtudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo (tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
        Ano e meio, ou dois annos, depois lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro - de inventar um poeta bucolico, de espécie complicada, e apresentar-lh'o, já me não lembro como, em qualquer especie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma commoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de extase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triumphal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um titulo "O Guardador de Rebanhos". E o que se seguiu foi o apparecimento de alguem em mim, a quem dei desde logo o nome Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da phrase: apparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação immediata que tive. E tanto assim que, escriptos que foram esses trinta e tantos poemas, immediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a "Chuva Obliqua", de Fernando Pessoa. Immediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa elle só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
        Apparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subconscientemente - uns discipulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo individuo. Num jacto, e à machina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triumphal de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
        Criei, então uma coterie inexistente. Fixei aquillo tudo em moldes de realidade. Graduei as influencias, conheci as amisades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergencias de criterios, e em tudo isto me parece que foi eu, creador de tudo, o menos que alli houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão esthetica entre Ricardo Reis e Alvaro de Campos, verá como elles são diferentes, e como eu não sou nada na materia.
        Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de paginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema "antigo" do Alvaro de Campos - um poema de como o Alvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter cahido sob a sua influencia. E assim fiz o "Opiario", em que tentei dar todas as tendencias latentes do Alvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escripto, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, emfim, creio que não saiu mau, e que dá o Alvaro em botão...
        Creio que lhe expliquei a origem dos meus heteronymos. Se ha porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lucido - estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lucido -, diga, que de bom grado lh'o darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e hysterico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Alvaro de Campos, tenho chorado lagrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casaes Monteiro!
        Mais uns apontamentos nesta materia... Eu vejo deante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as edades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mez, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quasi toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quasi alguma. Alvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes e é verdade, pois, feito o horoscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura media, e, embora realmente fragil (morreu tuberculoso), não parecia tam fragil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais secco. Alvaro de Campos é alto (1m,75 de altura, mais 2 cm. do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem côr, olhos azues; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, typo vagamente de judeu portuguez, cabello porém liso e normalmente apartado ao lado, monoculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quasi nenhuma - só instrucção primaria; morreram-lhe cedo o pae e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico: vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monarchico. É um latinista por educação alheia, e um semi-hellenista por educação propria. Alvaro de Campos teve uma educação vulgar de lyceu; depois foi mandado para a Escocia estudar engenharia, primeiro mechanica e depois naval. Numas ferias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o "Opiário". Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
        Como escrevo em nome desses trez?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um subito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heteronymo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Alvaro de Campos, apparece sempre que estou cansado ou somnolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocinio e de inhibição; aquella prosa é um constante devaneio. É um semi-heteronymo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não differente da minha, mas uma simples mutilação della. Sou eu, menos o raciocinio e a affectividade. A prosa, salvo o que o raciocinio dá de tenue à minha, é egual a esta, e o portuguez perfeitamente egual; ao passo que Caeiro escrevia mal o portuguez,Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer "eu proprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exaggerado. O difficil para mim, é escrever a prosa de Reis - ainda inedita - ou de Campos. A simulação é mais facil, até porque é mais espontanea, em verso).
        Nesta altura estará o Casaes Monteiro pensando que má sorte o fez cahir, por leitura, em meio de um manicomio. Em todo o caso, o peor de tudo isto é a inchoherencia com que o tenho escripto. Repito, porém: escrevo como se estivesse fallando comsigo, para que possa escrever immediatamente. Não sendo assim, passariam mezes sem eu conseguir escrever. (*)
        Falta responder à sua pergunta quanto ao occultismo. Pergunta-me se creio no occultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; comprehendo porém a intenção e a ella respondo. Creio na existencia de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em existencias de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente creou este mundo. Póde ser que haja outros Entes, que presumivelmente creou este mundo. Póde ser que haja o outros Entes, egualmente supremos, que hajam creado outros universos, e que esses universos co-existam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões e aindas outras, a Ordem Externa do occultismo, ou seja a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão "Deus", dadas as suas implicações theologicas e populares, e prefere dizer "Grande Architecto do Universo", expressão que deixa em branco o problema de se Elle é Creador, ou simples Governador, do mundo. Dadas essas escalas de seres, não creio na communicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir communicando com seres cada vez mais altos. Ha trez caminhos para o occulto: o caminho magico (incluindo practicas como as do espiritismo, intellectualmente no nivel da bruxaria, que é magia tambem), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho mystico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alchymico, o mais difficil e o mais perfeito de todos, porque involve uma transmutação da propria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defezas que os outros caminhos não teem. Quanto a "iniciação" ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciatica nenhuma. A citação, epigraphe ao meu poema Eros e Psyche, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templaria de Portugal, indica simplesmente - o que é facto - que me foi permittido folhear os Rituaes dos trez primeiros graus dessa Ordem, extincta, ou em dormencia, desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormencia, eu não citaria o trecho do ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituaes que estão em trabalho.
        Creio assim, meu querido Camarada, ter respondido, ainda com certa incoherencia, às suas perguntas. Se ha outras que deseja fazer, não hesite em fazel-as. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá succeder, e isso me desculpará desde já, é não responder tam depressa.
        Abraça-o o camarada que muito o estima e admira,

Fernando Pessoa

 

P.S.(!!!)                                                                                                        14/1/1935.

 

        Além da copia que normalmente tiro para mim, quando escrevo à machina, de qualquer carta que involve explicações da ordem das que esta contém, tirei uma copia supplementar, tanto para o caso de esta carta se extraviar, como para o de, possivelmente, ser-lhe precisa pra qualquer outro fim. Essa copia está sempre às suas ordens.
        Outra coisa. Pode ser que, para qualquer estudo seu, ou outro fim analogo, o Casaes Monteiro precise, no futuro, de citar qualquer passo desta carta. Fica desde já auctorizado a fazel-o, mas com uma reserva, e peço-lhe licença para lh'a accentuar. O paragrapho sobre occultismo, na página 7 da minha carta, não póde ser reproduzido em lettra impressa. Desejando responder o mais claramente possivel à sua pergunta, sahi propositadamente um pouco fóra dos limites que são naturaes nesta materia. Trata-se de uma carta particular, e porisso não hesitei em fazel-o. Nada obsta a que leia esse paragrapho a quem quizer, desde que essa outra pessoa obedeça tambem ao criterio de não reproduzir em lettra impressa o que nesse paragrapho vae escripto. Creio que posso contar comsigo para tal fim negativo.
        Continúo em divida para comsigo da carta ultra-devida sobre os seus ultimos livros. Mantenho o que creio que lhe disse na minha carta anterior: quando agora (creio que será só em Fevereiro) passar alguns dias no Estoril, porei essa correspondencia em ordem, pois estou em divida, nessa materia, não só para comsigo, mas tambem com varias outras pessoas.
        Occorre-me perguntar de novo uma coisa que já lhe perguntei e a que me não respondeu: recebeu os meus folhetos de versos em inglez, que ha tempos lhe enviei?
        "Para meu governo", como se diz em linguagem commercial, pedia-lhe que me indicasse o mais depressa possivel que recebeu esta carta. Obrigado.

 

F. Pessoa

 

 

(*): Esta carta, tal como foi inserida por Adolfo Casais Monteiro na revista Presença, n.º 9, Junho de 1937, e mais tarde por Jorge de Sena nas "Páginas de Doutrina Estética", terminava aqui, em obediência ao Post Scriptum de Fernando Pessoa, que pedia a não publicação do trecho subsequente devido aos motivos que apontava. Contudo, com autorização de Casais Monteiro, João Gaspar Simões incluiu o referido trecho ocultista na sua "Vida e Obra de Fernando Pessoa", (2.ª ed.)

 

in "Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa",

ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.

16
Jan09

Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casaes Monteiro sobre a génese dos heterónimos

eva

Este texto tem a grafia actualizada

 

 

Caixa Postal 147

Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

 

Meu prezado Camarada,

 

            Muito lhe agradeço a sua carta, a que vou responder imediatamente e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

            Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe – Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque não sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha de dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.

            Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro de natureza da Mensagem. Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a Mensagem não as inclui.

            Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, devo dizer, com os olhos postos no prémio do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para a entrega dos livros, que primitivamente fora até ao fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares da Mensagem, fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.

            Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de Mensagem figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grandes – um livros de umas 350 páginas –, englobando as diversas subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.

            Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com a publicação da Mensagem. Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque esta faceta – em certo modo secundária – da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português, parte deste mesmo livro) – precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com a Esquadria e o Compasso, pelo Grande Arquitecto.

            (Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha – e fará bem em supor, porque é verdade – que estou simplesmente falando consigo.)

            Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) Plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.

            Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da Mensagem, que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão totalmente remodelada do Banqueiro Anarquista; essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente este escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome este frase no sentido de Prémio Nobel imanente.) Depois – e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia – tenciono, durante o Verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que a Mensagem já manifestou.

            Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental vestida de música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!

            Creio que respondi à sua primeira pergunta.

            Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!

            Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.

            Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com os outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

            Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já não me lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.

            Desde criança, tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

            Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chavalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já não me ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era não sei quê, um rival do Chevalier de Pas… Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.

            Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatuto, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, ouço, sinto, vejo. Repito: ouço, sinto, vejo… E tenho saudades deles.

            (Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)

            Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia irregularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

            Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua própria inexistência como Alberto Caeiro.

            Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

            Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim, e parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

            Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi, dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive de desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão…

            Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido – estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido – , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!

            Mais uns apontamentos nesta matéria… Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso) não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais dois cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de vago moreno mate; Campos, entre o branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem a Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.

            Como escrevo em nome destes três? Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc. Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea em verso.)

            Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever. (*)

            Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes nesses mundos, em existências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos co-existam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do ocultismo, ou seja a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria Anglo-Saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se ele é Criador ou simplesmente Governador, do mundo. Dadas essas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epigrafe ao meu poema Eros e Psyche, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência, desde cerca de 1888. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.

            Creio assim, meu querido Camarada, ter respondido, ainda com certa incoerência às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.

            Abraça-o o camarada que muito o estima e admira,

 

 

Fernando Pessoa.

 

 

P.S. (!!!)

 

            Além da cópia que normalmente tiro para mim, quando escrevo à maquina, de qualquer carta que envolve explicações da ordem das que esta contém, tirei uma cópia suplementar, tanto para o caso de esta carta se extraviar, como para o de, possivelmente, ser-lhe precisa para qualquer outro fim. Essa cópia está sempre às suas ordens.

            Outra coisa. Pode ser que, para qualquer estudo seu, ou outro fim análogo, o Casais Monteiro precise, no futuro, de citar qualquer passo desta carta. Fica desde já autorizado a fazê-lo, mas com uma reserva, e peço-lhe licença para lha acentuar. O parágrafo sobre o ocultismo, na página 7 da minha carta, não pode ser reproduzido em letra impressa. Desejando responder o mais claramente possível à sua pergunta, saí propositadamente um pouco fora dos limites que são naturais nesta matéria. Trata-se de uma carta particular, e por isso não hesitei em fazê-lo. Nada obsta a que leia esse parágrafo a quem quiser, desde que essa outra pessoa obedeça também ao critério de não reproduzir em letra impressa o que nesse parágrafo vai escrito. Creio que posso contar consigo para tal fim negativo.

            Continuo em dívida para consigo da carta ultra-devida sobre os seus últimos livros. Mantenho o que creio que lhe disse na minha carta anterior: quando agora (creio que será só em Fevereiro) passar alguns dias no Estoril, porei essa correspondência em ordem, pois estou em dívida, nessa matéria, não só para consigo, mas também com várias outras pessoas.

            Ocorre-me perguntar de novo uma coisa que já lhe perguntei e que me não respondeu: recebeu os meus folhetos de versos em inglês, que há tempos lhe enviei?

            «Para meu governo», como se diz em linguagem comercial, pedia-lhe que me indicasse o mais depressa possível que recebeu esta carta. Obrigado.

 

F. Pessoa. 

 

 

(*): Esta carta, tal como foi inserida por Adolfo Casais Monteiro na revista Presença, n.º 9, Junho de 1937, e mais tarde por Jorge de Sena nas "Páginas de Doutrina Estética", terminava aqui, em obediência ao Post Scriptum de Fernando Pessoa, que pedia a não publicação do trecho subsequente devido aos motivos que apontava. Contudo, com autorização de Casais Monteiro, João Gaspar Simões incluiu o referido trecho ocultista na sua "Vida e Obra de Fernando Pessoa", (2.ª ed.)

 

in "Fernando Pessoa, Obra Poética e em Prosa",

ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986

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11
Jan09

"Liberdade" de Fernando Pessoa - audição e uma análise do poema

eva
Com a devida vénia, transcrevo aqui uma análise ao poema Liberdade de Fernando Pessoa, análise postada em http://omj.no.sapo.pt/Forum/poema_liberdade.htm , no sítio O Major Reformado

 

"Datado de 16/3/1935, o poema "Liberdade" é um dos poemas mais conhecidos e citados de Fernando Pessoa. É um poema ortónimo, ou seja, escrito por Fernando Pessoa em seu próprio nome e aborda um tema raras vezes abordado pelo poeta de modo tão explicito: a liberdade humana.

 

À primeira vista trata-se de uma abordagem leve e divertida ao tema. Essa é claramente a sensação que se tem ao ler o poema. "Ai que prazer / Não cumprir um dever" - uma leveza simples e recta, que fala de como é bom não ter deveres, ou tê-los e não os cumprir, numa rebeldia com que sonham todas as crianças.

 

Mas em Pessoa nada é simples, muito menos recto...
 
Há uma chave para desvendar este poema "Liberdade". Um poema eu considero ser de uma intensa ironia. Mas essa chave curiosamente não está no poema, mas apenas referenciada nele de modo indirecto. É uma pista que Pessoa lança ao leitor, mas apenas ao leitor mais interessado - um leitor de segundo nível, que ignora o tom superficial leve das palavras e se interessa pelo conteúdo escondido das intenções.
 
Que pista é esta? Está numa citação que Pessoa nunca colocou, mas que devia vir logo a seguir ao título. No manuscrito original Pessoa escreve debaixo do titulo do poema: "(Falta uma citação de Séneca)".
 
Que citação é esta? E quem era Séneca?
 
Séneca foi um filósofo do Séc. I, um estóico preocupado com a ética. Não nos alongaremos com a análise da vida deste filósofica, mas citaremos dois principios dele que nos interessam para a compreensão do poema "Liberdade". Dizia Séneca que o cumprimento do dever era um serviço à humanidade. Para ele o destino estava predestinado, o homem pode apenas aceitá-lo ou rejeitá-lo, mas apenas a aceitação lhe pode trazer a liberdade. Eis o estoicismo na sua essência.
 
Eis o filtro que se deverá usar na leitura do poema "Liberdade": o estoicismo de Séneca.
 
Tudo o que antes parecia ligeiro, agora é intensamente irónico. Fernando Pessoa pensa o contrário do que diz o seu poema. Se ele diz que bom é não cumprir um dever, ele pensa o contrário, que o dever é essencial para a liberdade, se o homem quiser ser livre, terá de se submeter ao cumprimento do dever que lhe é imposto.
 
Outra achega: a semelhança entre a ironia utilizada e a escrita que se assemelha à de Caeiro. É Caeiro o heterónimo que renega igualmente o dever e o heterónimo que domina Pessoa no inicio das suas decisões, que o prende à realidade e lhe permite ascender aos astros. Será Pessoa aqui também um critico de si próprio e um critíco de Caeiro? Não poderemos dizer ao certo, mas parece-nos que sim, que as palavras de Pessoa são irónicas e dirigidas a Caeiro, ao seu próprio sonho de juventude, em que pensou ser possível ser livre das ideias.
 
Afinal este poema é um ensaio de revolta contra o que Caeiro disse, contra os próprios projectos falhados de Pessoa. Ele que queria atingir a liberdade libertando-se de tudo, da civilização, dos deveres, dos livros, ser apenas criança... O titulo - Liberdade - é apenas uma ironia triste e amarga e um contra-senso propositado. Arde em Fernando Pessoa a derrota da sua aventura, perto que está da morte quando escreve este poema. Este poema é de certo modo o epitáfio intelectual de Caeiro - o Mestre, por parte de Fernando Pessoa - o Criador.
 
Ps: há quem adivinhe neste poema de Pessoa também uma crítica social implicita, sobretudo nos versos: "Flores, música, o luar, e o sol que peca / Só quando, em vez de criar, seca." e na referência às finanças, que encobriria um ataque a Salazar, que foi, como se sabe, Ministro das Finanças entre 1928 e 1932". 
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E agora acrescento eu!
Para quem possa estranhar, na análise acima transcrita, a referência a Salazar que pode parecer algo forçada (pois não é uma faceta muito conhecida de Pessoa) não é, no entanto, de estranhar.
Pessoa criticou abertamente Salazar tendo-lhe dedicado alguns poemas, nomeadamente e a título de exemplo:
 
 
Antonio de Oliveira Salazar.
Trez nomes em sequencia regular...
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma arvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
 
**************************
 
Este senhor Salazar
É feito de sal e azar.
Se um dia chove,
A agua dissolve
O sal,
E sob o céu
Fica só azar, é natural.
 
Oh, c'os diabos!
Parece que já choveu...
 
***************************
 
Coitadinho
Do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho...
 
Bebe a verdade
E a liberdade,
E com tal agrado
Que já começam
A escassear no mercado.
 
Coitadinho
Do tiraninho!
O meu vizinho
Está na Guiné,
E o meu padrinho
No Limoeiro
Aqui ao pé,
Mas ninguém sabe porquê.
 
Mas, enfim, é
Certo e certeiro
Que isto consola
E nos dá fé:
Que o coitadinho
Do tiraninho
Não bebe vinho,
Nem até
Café.
 
 
in "Edição Crítica de Fernando Pessoa - Volume I, Tomo V. Edição de Luís Prista. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000"
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João Villaret diz o poema "Liberdade" 

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